quarta-feira, 27 de junho de 2007

::Céu e Inferno: Salvo do que ?

Céu e Inferno: você foi salvo do quê?

O apelo clássico do evangelismo diz que é preciso aceitar a Jesus como único salvador para ir para o céu, passar a eternidade no paraíso. Os pregadores mais inflamados reforçam o apelo alertando sobre a vida póstuma daqueles que recusam a Cristo e desobedecem aos seus mandamentos: fogo eterno, lago que arde fogo e enxofre, lugar de choro e ranger de dentes. Opa, não esqueci, os calvinistas ortodoxos não usam a expressão “aceitar a Jesus” porque crêem que é Deus que nos aceita em Cristo, somos predestinados por Ele para a salvação, logo não é o ser humano que voluntariamente decide ser salvo.

Afinal, como poderia, fui catequizado na Igreja Presbiteriana do Brasil. E digo mais, continuo não gostando dessa expressão nos termos em que ela costuma ser colocada, como se Jesus estivesse esmolando nosso amor. Creio, sim, que é Jesus que nos aceita por e em amor e graça, não mais, porém, baseio-me num sistema de pensamento rígido e mecanicista. Não tenho mais a pretensão de resolver o paradoxo entre soberania de Deus e liberdade humana, paradoxo não é para ser resolvido é para ser vivido pela fé. Deus é soberano inclusive sobre sua soberania.

Ressalvas a parte, na prática o que fica na cabeça do indivíduo que ouve a mensagem evangelística é que é preciso professar a fé em Cristo e seguir seus mandamentos para ser obter a salvação. Mas que salvação é essa? Eu sou salvo do quê e para quê? Em termos práticos muda alguma coisa na minha existência terrena ou é algo que diz respeito apenas a vida após a morte?

Questões como essas inquietam e não encontram respostas satisfatórias, que nos façam desejar ardentemente materializar o espírito do novo céu e da nova terra na ordem temporal, a instalação completa do Reino de Deus mediante o neoadvento de Cristo e aplaquem o medo da morte, se nossa visão de salvação se restringe a uma mudança geográfica. Imaginem irmos para o céu com nosso jeito de ser, com nossas dissonâncias psíquicas, nossas esquisitices, nossos desatinos, carregados do nosso lixo emocional. Projetaríamos mutuamente nossas sombras e, assim, logo infernizaríamos o céu, não haveria paraíso que resistisse. Já imaginou ter que passar a eternidade na companhia de crente chato e “evangélico”? Só seria melhor do que ser tragado pelo inferno.

É melhor não imaginar, mas crer que a salvação de Jesus é integral, que além de nos salvar de uma geografia tenebrosa, ele nos salva de um estado de ser tenebroso. Salva-nos de nossa natureza obscura que sombreia sua luminosidade em nós e turva nossa visão, dificultando que enxerguemos a sua imagem na criação decaída e nos mobilizemos para resgata-la, imprimindo as marcas do Reino. Da mesma obscuridade que por vezes nos dessensibiliza da dor do semelhante, ergue barreiras ao contato com o próximo, mata nossa fome e sede de justiça, ensoberbece-nos em nossos pretensos méritos e em nossas pretensas virtudes, mitiga a nossa gratidão àqueles que já nos nutriram com amor, acarreta culpa e impede de gozarmos de prazeres legítimos, e torna a vida um fardo pesado.

Àqueles que não buscam a atualização dessa salvação existencial, não por intermédio de práticas ascéticas, e sim por meio de uma entrega radical ao amor e a graça de Cristo, existencialmente “gozam” do prelúdio do inferno, independentemente do indivíduo ser crente ou descrente. No primeiro caso ele vai clamar a Deus para tira-lo da tribulação ou para tirar-lhe a vida. A morte é entendida aí como a última e única porta para a salvação, o tiro de misericórdia. No segundo caso, se um cristão, seja ele manso ou raivoso, disser a ele, que é preciso aceitar a Jesus, senão irá para o inferno, ele não ficará impressionado e responderá com uma forte dose de razão que o inferno é aqui e se prontifica até leva-lo até lá para que possa conhecer, muito provavelmente na sua casa.

Porém, a salvação não é apenas uma operação de subtração, é também de adição, divisão e multiplicação. Jesus adiciona em nós um novo ser - ao desinstalar o velho ser, o não-ser -, que autenticado em amor, é chamado para dividir os frutos materiais e simbólicos do reino e assim ter a sua colheita multiplicada. Para se deleitar como membro de um corpo coletivo e harmonioso, que tem um Pai que é nosso.

Que Deus nos conceda sabedoria para selecionar o material que temos que utilizar para edificar nossa casa espiritual – nossa salvação -, porque o alicerce é Jesus Cristo. O tempo mostrará, através do fogo depurador, se o que estamos usando é ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha (I Coríntios 3.10-15). Deus permita que nossa salvação não seja pelo fogo.

Por Júlio - Estação São Paulo

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