sexta-feira, 13 de julho de 2007

::A gênesis da conservação:: - Nadiela Monteiro

A gênesis da conservação

“Meus queridos pares,

Pioneiros no Brasil na questão do meio ambiente, hoje somos passados para trás por interesses de maus políticos, maus empresários e PhD’s de aluguel. Em termos de Brasil, estamos vendo o barco afundar e ninguém diz nada.

São transgênicos entrando de contrabando pelo Sul, e o governo apoiando. São queimadas da Amazônia, e o governo impassível. Gente com terra do tamanho de um Estado, e a gente sem terra. É transposição do rio São Francisco, no lugar de revitalização.

No Pantanal, querem fazer do rio Paraguai um canal de navegação com portos para grandes embarcações e grandes comboios. É pólo siderúrgico, é pólo gás-químico. Agora, querem fazer usinas de álcool na Bacia do Alto Paraguai. Um terço dos deputados estaduais são a favor. Um terço contra. E um terço sem saber o que é. Já que não temos votos para salvar o Pantanal, vamos dar a vida para salvá-lo”.


A imprensa brasileira publicou, há alguns meses, esta carta de despedida, de dor e profundo desalento. Francisco Anselmo Gomes de Barros ateia fogo ao próprio corpo num último e desesperado gesto de amor pelo meio ambiente. Uma vida inteira doada à causa ambiental é selada com morte em praça pública, em meio a um protesto contra a construção de usinas de álcool no pantanal mato-grossense. Sobre o corpo seco de esperança, ele utiliza a gasolina.

Num outro gesto extremo, mas de menores proporções, um padre recusa-se veementemente a comer. Sua greve de fome nem de perto se iguala à fome vivenciada por milhares de sertanejos, fome e sede, diante da seca e da infertilidade dos hectares de terra nua e triste. Mas seu coração chora águas de um rio que pode morrer ou matar. A transposição do Rio São Francisco vem com um potencial imenso de enriquecer uns poucos envolvidos, alimentar de vento a esperança do povo e causar um impacto ambiental sem precedentes.

E diante de atos como estes, quase acostumados com a qualidade de ar regular ou ruim, com as enchentes que devolvem todo o lixo que os rios se recusam a engolir, com o aumento progressivo da temperatura terrestre que derrete geleiras e promete inundar cidades litorâneas, cristãos aguardam o glorioso dia em que Jesus virá nos salvar de toda esta sujeira. Ou estamos nós agindo em algum canto deste planeta em defesa da criação e em louvor ao Criador? Ou, ainda, seríamos nós os grandes responsáveis pela imensa velocidade com que a Terra vem sendo dizimada, plantas, animais, minerais, águas, ar...?

Em 1967, o ecologista Lynn White escreveu um artigo para a revista Science, intitulado “As raízes históricas da nossa crise ecológica”. Nele, o cientista afirmou, categoricamente, serem os cristãos os responsáveis por toda a degradação ambiental. Sua argumentação parte do pressuposto de que a fé cristã crê no progresso perpétuo, uma vez que a história humana não faz parte de uma série de acontecimentos aleatórios, mas é gerida por um Deus soberano e bom, e tem, como fim, o alcance da melhoria total. De fato, é impulsionado pela cosmovisão cristã que o Ocidente desenvolveu uma fé inabalável no progresso, gerando um crescimento econômico incontrolável e seus deletérios efeitos de concentração urbana de pessoas, riquezas e poluição.

Além disso, White afirma que a religião cristã é a mais antropocêntrica já vista, encarando os seres humanos como o ponto alto da criação e estabelecendo uma fronteira abismal entre natureza e humanidade. O cristão espera a volta de Cristo, que dará fim a este mundo com um apocalipse abrasador, do qual, é claro, ele estará a salvo. Para que se preocupar com a destruição da camada de ozônio ou a qualidade do ar se ele vai passar a eternidade respirando o puro e cristalino ar do céu?

Anne Primavesi, em seu livro “Do apocalipse ao gênesis”, argumenta sobre a premente necessidade de mudar para um paradigma ecológico na teologia cristã:

”...dentro de um mundo cercado de desastres ambientais e ansioso por suas ‘boas novas’, o cristianismo tradicional comportou-se em larga escala como um sistema fechado de salvação humana. Lidou com os sistemas a seu redor, de filosofia, arte, ciência ou religião, como se a informação que eles têm a oferecer fosse de pouco ou nenhum interesse ou valor; ou, como no caso de Galileu, como se fosse oposto e irreconciliável como o que supostamente só podia estar disponível ao sistema cristão fechado. Em grande parte, fechou seu sistema sagrado de culto dentro das paredes das igrejas, excluindo a percepção da sacralidade na natureza. Isso reforçou o áspero dualismo de natureza e espírito, de corpo e alma, de feminino e masculino que apóia estruturas hierárquicas de dominação. Em tempos modernos, quando existe crescente percepção do prejuízo causado às mulheres e à natureza por sistemas exclusivamente masculinos de governo, o cristianismo permaneceu como um dos poucos em que a subordinação é legitimada como vontade de Deus.”

Dr. Kenneth Boulding, por sua vez, respondendo a uma pergunta sobre a responsabilidade dos cristãos, afirmou que “todo o mundo está metendo os pés pelas mãos aqui na Terra. Ninguém precisa ser protestante para iniciar um desenvolvimento econômico perfeitamente evidente. Mas é claro que toda a estória de ‘crescei e multiplicai-vos’ e de ter o domínio da Terra leva certamente a uma fase de expansão”.

Há, ainda, cristãos que negam a existência de uma crise ambiental e destacam Deus como o Grande Sustentador que não permitirá um colapso. Classificam os ambientalistas como pagãos adoradores da Terra, divulgadores da Nova Era e da religião da Mãe Terra e da Deusa. Outros descansam na certeza de que Deus cuidará deles, em todo tempo e ocasião. “Conquanto a fé deles em Deus seja genuína, é também ingênua e limitada se não se preocupa com o resto do mundo, em que não é tão evidente que Deus esteja cuidando das pessoas”, salientam Dale & Sandy Larsen, no livro “Sete mitos sobre o Cristianismo.

Mas o que há de verdadeiro em todas estas afirmações?

É preciso, logo, entender e separar a ação dos cristãos e a essência do cristianismo. Sempre que o homem exclui Deus de quaisquer aspectos de sua vida, uma porta é escancarada à exploração egoísta; uma breve lembrança de que o Iluminismo empurrou Deus para fora do palco nos permite relacionar a manipulação prejudicial da natureza a partir da Revolução Industrial. Exploração exige separação: até mesmo a visão espacial do Planeta Azul possibilitou uma ação nociva sobre a Terra, agora objeto de pesquisa.

Mas e a Bíblia, fonte de saber cristão, o que afirma? Não é ela que diz que Deus plantou um jardim e lá colocou o homem? E este mesmo livro declara ter vindo Deus habitar neste planeta! Larsen reflete sobre a encarnação:

“Deus feito carne caminha pelas estradas poeirentas, fica cansado, tem sede, irrita-se, chora os mortos, entristece-se diante da hipocrisia dos inimigos e das conversas fúteis dos amigos. Observa a natureza de perto, e a utiliza nos seus ensinamentos: o solo, as sementes, os peixes, as ovelhas, os bodes, os pássaros, as flores, as árvores, o céu, a luz, a água (...) A encarnação é um envolvimento mais profundo com o mundo material, um comprometimento muito mais profundo com esta terra, do que qualquer deus que já é ‘parte da terra’ poderia empreender”.

Sem desconsiderar a influência do pensamento filosófico sobre a ação cristã, partiremos, então, para uma análise dos relatos bíblicos da Criação numa tentativa de fundamentar e justificar a responsabilidade do cristão diante do meio ambiente.

“ Quando o SENHOR Deus fez a terra e os céus, ainda não tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o SENHOR Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e também não havia homem para cultivar o solo (...) Então o SENHOR Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente. Ora, o SENHOR Deus tinha plantado um jardim no Éden, para os lados do leste, e ali colocou o homem que formara. (...) O SENHOR Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”. Gênesis 2.4,5,7,8,15.

De acordo com a Teoria Documental, o trecho acima pertence à narrativa javista, que concentra seus interesses nas relações do ser humano com a terra, a água e os animais. Ao contrário do relato sacerdotal, em Gênesis 1, em que o humano é criado deliberadamente por Elohim e dele é originado contrapondo-se ao restante da criação, a origem da humanidade neste trecho é terrena: ‘adam é feito de ‘adamah, como um terreno porque feito da terra.

Ludovico Garmus, teólogo católico, realiza uma leitura ecológica dos primeiros três capítulos de Gênesis, e afirma que a atual crise ecológica advém de um desequilíbrio relacional entre as pessoas e destas com a criação. Em sua leitura ele observa como o trecho javista destaca a importância da chuva, da irrigação e dos rios: “O solo serve como base da vida humana e animal (...) Reconhece-se assim que a criatura humana é solidária com a terra; somos o mesmo chão com a terra. Talvez a isso aluda o salmista quando diz: ‘Meus ossos não te eram encobertos, quando fui formado no oculto e tecido nas profundezas da terra’(Sl 139,15)”.

Diferentemente do capítulo primeiro de Gênesis, a narrativa javista se inicia apresentando um mundo onde não havia ainda arbustos e vegetação: a terra aguardava chuva e humanos que cultivassem o solo (v.5). Aí é destacada a alteração do meio produzida pelo clima – chuva – e pelo humano – agricultura. É ainda Garmus quem diz: “Somente o agricultor é capaz de transformar o deserto em terra agrícola por meio da irrigação. O agricultor é capaz de tornar a terra, que é a casa sua (ecologia), mais habitável. A criação, portanto, pode ser aperfeiçoada pelo ser humano. Deus o quer como co-criador, diriam hoje os teólogos”.

É possível reforçar o pensamento de Garmus citando o verso 15 do capítulo segundo de Gênesis: aí Deus dá ao homem uma função no jardim. O texto afirma que a finalidade do Criador ao colocar o homem no jardim era “cuidar dele e cultivá-lo”. Outros traduzem a palavra ‘cultivar/trabalhar’ (‘abad) como ‘servir’: o ‘adam seria, então, um servidor do jardim, um jardineiro. Uma tradução do inglês de uma nova versão do texto hebraico diz: “...e o colocou para descansar no Jardim do Éden para servi-lo e guardá-lo”.

Deus criou um ecossistema perfeitamente equilibrado, onde humanos, animais e vegetais conviviam harmoniosamente com seu Criador. É por isto que João A. de Souza Filho, em seu livro intitulado “Ecologia à Luz da Bíblia” , fala de um desejo permanente do homem de retornar ao jardim: morando em megalópoles e em meio a tanta tecnologia, ele permanece em busca de um ambiente natural onde possa desfrutar de paz e descanso.

Não foi à toa que Deus repetiu sete vezes, durante o primeiro relato da criação, em Gênesis 1, que “era bom” o que havia criado.

É também Garmus que avalia o grande prazer de Deus em sua obra: “A criação no seu todo é perfeita, útil, bela e boa. Conseqüentemente, Deus gosta do que faz, Deus ama o que criou. As obras da criação são declaradas boas, porque propiciam e promovem vida. Porém, não é só Deus que produz vida. Também as plantas, os animais e o ser humano produzem vida”. A palavra criar, entretanto, é usada apenas para a ação de Deus; ao humano não compete criar, mas reproduzir. E como criatura, receptora de vida, o humano deve honrar o Criador com o respeito pela vida, seja que forma de vida for.

O teólogo Wayne Grudem fala sobre o propósito da Criação:

“É evidente que Deus criou seu povo para a sua própria glória, pois ele fala dos seus filhos e filhas como aqueles ‘que criei para minha glória, e que formei, e fiz’ (Is 43,7). Mas Deus não criou para seus desígnios somente os seres humanos. Toda a criação tem por meta revelar a glória de Deus. Mesmo a criação inanimada – as estrelas, o sol, a lua e o firmamento – dá testemunho da grandeza de Deus. ‘Os céus declaram a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite’ (Sl 19.1,2). O cântico de adoração celestial em Apocalipse 4 vincula o fato de ter Deus criado todas as coisas com o ser ele digno de receber glória por elas.”

Finalmente, acrescenta que se Deus criou o universo para manifestar a sua glória, cabe a toda a natureza criada cumprir sua finalidade. Ao humano, o que serve/cultiva e guarda e também administra/domina, compete uma maior responsabilidade de honrar o Criador com a promoção da glória de sua criação: que seu cuidado, proteção e governo venham a tornar o ambiente habitável para todos os outros seres criados e deleitoso para o Grande Idealizador.

Referências bibliográficas

GRUDEM, Wayne. Teologia sistemática. São Paulo : Vida Nova, 1999.

LARSEN, Dale & Sandy. Sete mitos sobre o cristianismo. São Paulo : Vida, 2000.

MÜLER, Ivo Perspectivas para uma nova Teologia da Criação. Petrópolis, RJ : Vozes, 2003.

PRIMAVESI, Anne. Do apocalipse ao gênesis. São Paulo : Paulinas, 1996.

SOUZA Filho, João A. de. Ecologia à luz da Bíblia. 2ª ed. São Paulo : Vida, 1992.

Nenhum comentário: